Jacques dos Santos
Escritor
A epígrafe desta crónica, nada tem a ver com o livro de Mário Zambujal. Nem com o “Malandro” ou “A Ópera do Malandro”, música e peça do género musical de Chico Buarque, uma batelada de sucessos.
31/01/2021
Chico definiu o malandro como o ébrio desgraçado, o preguiçoso, o culpado de tudo e o que corre ao grito de “pega ladrão”, ao passo que na obra de Zambujal, que deu filme e séries adaptadas pela televisão portuguesa, há uma história que envolve sete ladrões ditos disfuncionais, com um plano de acção malandra, um daqueles golpes que só surgem em oportunidade única, uma vez na vida. Um assalto a uma colecção de jóias valiosas guardadas numa famosa instituição, vejam só.
E vejam também que pensei neste epitáfio, mal soube da morte de mais um amigo. Este que acaba de nos deixar, era um amigo feito há muitos anos, numa noite quente em Cabinda, um amigo consolidado ao longo do tempo, quando acompanhava à viola a inesquecível Puia, nos meandros culturais do seu atelier, nos lautos almoços com cantorias, nas noites de farra na Chá de Caxinde e em momentos mais intimistas. Nesses encontros de muito sorriso largo, fiquei a saber que tinha nascido como eu no Kwanza-Sul, e aprendi a ver nele um amigo muito especial, muito querido, daqueles que já não se usam mais.
É o retrato que faço do homem, sem o virtuosismo dos traços que com lápis ou pincel, tão bem sabia aplicar na sua insuperável arte de pintar. Foi assim que sempre o vi, foi assim que me habituei ao Nito Mendes Ribeiro, que também se chamava Firmino. A última fotografia dele que me chegou à mão mostrou-o debilitado, sem energia, diferente, muito diferente da figura que transbordava sobriedade e sentimento que lhe tocavam a alma, naquela noite ou final de dia em que o homenageamos no Nacional Cine-Teatro. Teve o Enoch sempre a seu lado, que chegou a chorar, acompanhado pelos acordes dedilhados pelo amigo.
Mas estavam lá, naquela foto, os mesmíssimos traços do músico de referência, do artista plástico de qualidade superior, do homem culto e interessado, do amigo do seu amigo. Um Artista, assim com A grande, um grande amigo, um bon vivant. Resumindo, um bom malandro. Um malandro sorridente que, até ser apanhado pela maldita, a inevitável morte, soube com a elegância e a inteligência que estavam patentes em todos os seus gestos, esquivar-se das partidas que a vida o obrigou a suportar, muitas vezes levando-o, como tem levado a muitos de nós, a ser quem não queremos ser. Ele era, em suma, um malandro que nada tinha a ver com a figura do outro, do vulgar malandrão que nos sugere o epíteto gatuno, calaceiro, manhoso ou pulha.
Entre nós, os da estirpe do Nito Mendes Ribeiro e do Enoch Vasconcelos, meu saudoso primo e seu inseparável compagnon de routeque lhe tomou a dianteira num dia de Todos os Santos, havia regras. E aquele pacto invisível, um acordo firmado que, kambas como irmãos assumidos que eram, não podia nunca ter sido quebrado à toa. Enoch partiu para o território da Grande Noite – onde provavelmente, a esta hora, já se encontraram e se abraçaram, urdindo uma serenata às estrelas –, quatro anos mais cedo, ambos cientes de que, entre nós, se defendia e se defende ainda um princípio. Ser malandro era e continua a ser o compromisso com a vida e saber vivê-la o melhor possível, pensando sempre que existe mais gente na terra, para além de nós próprios. É ser eterno apaixonado pela boa vida, ser boémio, fazer sorrir os outros, deixar a tristeza prá lá. É igualmente ser sério e comprometido quando a vida nos faz essa exigência no cumprimento das nossas obrigações.
Vivemos um momento em que as nossas preocupações se espalham por diversos campos como a pandemia, a recuperação económica e outros terrenos da ciência onde, apesar da tragédia que nos aniquila, a verdadeira malandragem, a subtil, a que nos maltrata, a que só faz contas de sumir, se infiltra e faz estragos impensáveis, do modo mais bárbaro, retirando-nos para além do resto, todas as possibilidades de voltarmos a ser os malandros que já fomos, quando abraçávamos conceitos defendidos no plano da vida, pelo Nito que era artista, pelo Enoch que era médico e por muitos outros técnicos da nossa turma.
Hoje há outros, são imensos, muitos mais do que são necessários. Existem os políticos liberais e os cientistas da história e da economia, há os conservadores e os reaccionários travestidos, assim como se doutoram facilmente os mestres na área dos maus hábitos e costumes. Muita gente que no plano da vida boa para todos, nada percebe. Pertencem ao grupo dos que nunca terão o gosto de sentir a sensação de prazer de ver atendido um pedido feito a um artista do calibre do Nito: Canta lá “dos gardénias para ti” ou, doutro jeito, diz então “veinteaños”, por favor.
Termino com os olhos molhados. Não consegui evitar lágrimas. Apresentando as minhas sentidas condolências à família do Nito, recordo-o com eterna saudade. No mesmo sentimento de perda envolvo o primo Enoch Vasconcelos. Entretanto, e porque a vida continua, saúdo os 445 anos da cidade de Luanda e os 32 anos da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde, assinalados a 25 e 28 deste Janeiro, respectivamente. Caros leitores, voltarei na próxima semana, no domingo, à hora do matabicho.
By Jornal de Angola