Catarina Fortunato “Mãe dos Setinhos”, trás mais uma crónica, esta semana. Desta vez, ela narra os mitos urbanos que também marcaram a nossa infância. Quem nunca colocou na sua mente que os albinos e gémeos, por exemplo, eram eternos inimigos? Longe de quaisquer preconceitos, este é mais um refrescamento da nossa memória colectiva.
Catarina Fortunato “Mãe dos Setinhos”*
Quando crescemos, a nossa vivência era recheada de mitos e tabus que enfeitavam a essência da pureza e inocência de ser criança. Rituais de defesa e protecção, como meter cuspe no umbigo quando víssemos uma lagartixa para um dia não sofrermos o infortúnio de gerar igual ou pior, medir pelo menos um metro de espaço para urinar na rua e a todo custo evitar que as urinas se tocassem ( nem me lembro qual era o motivo disto), fazer o sinal da cruz quando se sentisse um cheiro bom, de um bom pitéu confeccionado na própria dioba (fome), cheiro esse que invadia a mente surgido do nada , de tão bom podia ser de algo preparado por almas do outro mundo, que aspergiam pelo caminho para capturar espíritos mais gulosos, meter palito na cabeça para não apanhar uma boa surra depois das traquinices, cruzar os dedos para travar o cocó (fezes) do cão, atirar sal ao tecto para travar a chuva, amarrar capim para provocar a ausência do professor, meter folha de sorte no meio do caderno para passar de classe, não matar borboleta para não sair “pujo” na orelha, não olhar-se ao espelho de noite, não varrer de noite, não jogar cartas dentro de casa, não apanhar dinheiro… Essa de apanhar dinheiro, até hoje não o faço. Talvez por não ter encontrado ainda uma quantia substancial que valha apenas correr também o risco de apanhar uma doença incurável. Um dia a minha colega da 3ª classe sumiu da escola, mais tarde viemos a saber que ela havia falecido por ter apanhado dinheiro.
– Apanhou dois kwanzas, comprou “micates” e comeu. Mas sempre que ela terminasse de os comer, o dinheiro reaparecia e ela voltava a apanhar e comprava mais, até que ficou repleta e foi para a casa e de noite a barriga inflamou, ela começou a ver vultos e a delirar, gritando que tinha dois senhores barbudos e ensanguentados que vieram a sua busca, ela não queria ir com eles, mas acabaram por a levar. Então, ela morreu… ( uff que enredo… Mas foi assim que aconteceu segundo o nosso empolgado narrador que era seu vizinho).
Mais tarde veio, a saber-se que, ela e a sua família tinham regressado ao Congo. Não sei porquê, mas preferimos acreditar na primeira versão.
De todas essas situações, a rivalidade entre os kilombos (albinos) e os gémeos que chegavam mesmo a lutar e, em certas situações, resultado em fortes ferimentos ou mesmo em mortes era um dos mitos que também assustavam.
As gémeas andavam sempre juntas, aonde ia uma, como sombra, a outra lá estava. Qualquer sinal de presença de uma albina, as gémeas eram sempre as primeiras a atacar porque os “adversários” são mais identificáveis. Quando não pudessem atacar, punham-se em posição de defesa, rosnavam como um cão que vê um gato a aproximar-se e gritavam disparates feios… As pessoas apenas sorriam e porque o mundo sabia que os “gingongos” odiavam os “kilombos”. Algumas pessoas mais esclarecidas intervinham na luta e tentavam explicar que era tudo da nossa cabeça. Puro preconceito.
O que eu não entendia era ver alguns “kilombos” gêmeos ou com irmãos gémeos. O meu maior espanto foi ver uma albina gémea a dar a luz duas meninas, lá no hospital dos Cajueiros… Assim quem vai matar quem?
E como o amor sempre vence, o preconceito foi ultrapassado, tendo a religião agido fortemente sobre vários hábitos e costumes no sentido de os disseminar categoricamente.
Escritora
afonte