• 1 de Dezembro, 2024

“Mãe dos Setinhos”: NSANDU

Catarina Fortunato “Mãe dos Setinhos”, conhecida autora do livro “No Lugar Onde Hoje Guardo a Saudade”, escreve para afonte, uma interessante crônica que desafia a memória colectiva a regressar às origens. Quem nunca teve chara?Leia:

Andava sempre comigo de um lado para outro e as pessoas quando nos vissem juntas…Ela, uma mulher de meia idade, não era magra nem gorda, hoje vejo que era baixa. Mas naquele tempo era a maior mulher do mundo para mim. Eu, uma menina com cerca de 8/10 anos, magra e uma cabeça desproporcional ao corpo.

Perguntavam se eu era filha, ela era aportuguesada, mas preferia responder em kimbundu, num tom repleto de vaidade:  Nsandu iami(é meu chara). E isso bastava. Não precisava dizer mais nada… Em poucos minutos eu era vista como uma sinopse não menos importante dela mesma.

Passavam a chamar-me de tia Titina… Embora eu sublinhasse que preferia que me chamassem de Cati…Tia Tina, era irmã mais velha da minha mãe, a segunda filha de Nga Filipa, numa ordem de 7 irmãos, minha mãe é a kassula.

Dona de perfil invejável como pessoa, a isso se acrescia o facto de, ela ser dona de um bar e, como se pode imaginar, em consequência de sermos homônimas, o bar também era “meu”. Se fosse no “mato” tratando-se da irmã da mãe, nunca devia ser chamada de tia, mais sim de mãe, pois, era tudo que ela representava em minha vida.  Um anjo da guarda em forma de chará.

Ensinou-me quase tudo o que sei da vida: a cozinhar, lavar, beber, disparatar e reconhecer a falsidade enfeitada nos falsos sorrisos. Abonou-me de valores morais como a lealdade sem esquecer de mandar para a pingirita tudo que não era bom. Para ela, era tudo pão… Pão… Queijo… Queijo…

Quando a minha chará morreu, eu já tinha tido uma filha que, infelizmente havia falecido, mas ela esteve sempre ali… Compara-la a minha mãe, seria uma heresia. Na casa da chará era o meu oasis.. Era para lá, onde eu ia sempre que tinha fome ou precisasse algo para a escola. Os vestidos mais lindos que tive ganhei das suas mãos.

Éramos cúmplices, comunicávamos até com um piscar de olhos ou o franzir da testa. Não comia nada sem me dar, e quando eu não estivesse ela guardava e depois me dava em forma de recompensa… Depositava em mim uma confiança tão grande, e minha luta era estar a nível da sua expectativa, mesmo me defendendo com excesso, ela sabia quando não era eu quem tinha cometido. Desde cedo eu era a sua contabilista, discípla e fui nomeada sua viúva.

 – Quando eu morrer a chará fica na cama durante um mês… Use a minha cueca, pode ir na escola,ou passear mas não pode fazer a fofoca. – Dizia ela repetidas vezes e foi cumprido o seu desejo. Quando a chará partiu eu sentei em sua cama e cumpri à risca todo o ritual de viúva.

Meus filhos me acusam que não soube escolher chará para eles e quando lhes conto tudo o que a minha fazia por mim, mordem-se de inveja me artilhando com reclamações e comparações e eu apenas digo:

Já não se fazem charás como antigamente!

afonte

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