• 29 de Novembro, 2024

Os dias que experimentei a guerra

 Os dias que experimentei a guerra

Catarina Fortunato “Mãe dos Setinhos”, trás, na semana da independência angolana, pequenas, mas significantes memórias da guerra civil. Porém, sempre na perspectiva do refrescamento da memória colectiva.

Catarina Fortunato “Mãe dos Setinhos”*

Embora tenha nascido alguns anitos depois da independência de Angola e tenha crescido num clima de tensão por ter nascido e crescido em Luanda, a guerra, guerra mesmo, eu nunca, nunca tinha visto.

Todas as noites, ouvia os relatos da guerra pelo rádio, no programa “Angola Combatente”. O locutor narrava de uma forma intensa e optimista, os pormenores das batalhas sendo o partido enfatizado de maneira heróica.

Naquele tempo eu já sabia que a guerra tinha dois lados: Os dois matavam e destruíram… Um pelo povo e outro pelo povo. Os dois lados acreditavam que era para e por uma Angola melhor…

Outras vezes, ouvi dos meus vizinhos deslocados na primeira pessoa, a história sobre a guerra no Bula Atumba. Tinha até uma vizinha que para fazer calar o seu bebê era sò dizer o nome da organização “rebelde”…E o bebê calava imediatamente e, até que se sentisse seguro não voltava mias a piar.

–Dixibéé U…* uoló kuiza… Eué U…*teee … Dixibéé.

O bebê se calava e nos seus olhos exprimia pânico. Riamo-nos, parecia hilário. Nunca tínhamos, sequer, experimentado uma noite de kitota e não fazíamos ideia o que era.

A primeira vez que vi uma amostra de guerra, foi em 1992 quando em Luanda era proibido perguntar em que direção ficava a comuna do Kikolo…Pois, dava-te direito a uma sentença de morte. Os armazéns foram invadidos e açambarcados. E depois veio a fome, apresentou-nos o milho torrado, a fubá de milho, o feijão duro, as cabuenhas e a fubá do Brasil que mais parecia uma cola.

A fubá de milho e o peixe lambula sempre existiram, mas eram consumidos apenas de modo opcional, tendo mesmo alguns Luandinos afirmado que não comiam fubá de milho… É comida de Bailundo.

Mas quando a dioba entrou a palavra de ordem era:

O QUE NÃO MATA ENGORDA! 

Muita gente hoje, senhores abastados, viveram na primeira pessoa conjugada em todas formas, as faces da fome desde a papa com sal ao arroz de óleo de palma.

Lamber no pilão do gindungo e chupar vinagre, também arrancava a fome, diziam os mais bravos sobreviventes. Tive uma infância repleta de necessidades e carências, mas nunca passei fome.

A minha avó não deixava.

Foi então que em 1993, estava eu de férias e decidi ir à Luanda, estava no Lobito. Peguei o autocarro e fiz- me a estrada. O país vivia sob tensão dos sucessivos ataques da “força inimiga”. Saindo de Luanda para Benguela ou vice versa, quem passasse pela kanjala intacto podia louvar e agradecer. A Janela era o ninho da cobra. Era ali entre as trincheiras camufladas, arbusto e na cerca de folgas de palmeiras os agressores se escondiam… Eu ouvia dizer mas nunca tinha vivido na primeira pessoa um ataque das forças “rebeldes”.

O autocarro deslizava ferozmente pela estrada, com a aproximação da famosa cova da morte, noite que tinha seis Madres e um Padre na outra fila e eles começaram a balbuciar uma reza qualquer tateando o terço entre os dedos. Lá ao fundo uma mãe apertou o seu filho ao colo e cobri-o com um pano.

Dorme – Ordenou.

De repente surgindo do nada, seis homens fortemente armados, ocuparam a parte frontal da estrada e apontara-nos as armas.

O motorista parou sem sequer tentar resistir… dois entraram no autocarro, outros circundaram o veículo.

Foram olhando fortemente nos olhos a procura de militares e estrangeiros… Quando viram os representantes da igreja, fizeram uma vênia, seguido de um sinal da cruz… Fizeram algumas perguntas… Olharam para mim… Disseram algo em umbundo e puseram-se a rir (mas tarde vim saber por um tradutor lá mesmo no autocarro que um queria me levar para usar como mulher e o outro disse que eu era tão magra que parecia doente).

Feita a vistoria avançaram para o motorista, que, obedientemente desceu, foi ao porta-bagagem e entregou um saco de açúcar, uma caixa de óleo, um saco de peixe seco e uma caixa que eu não sabia de que era.

E no dia seguinte soube pelo “Angola Combatente” que alguns autocarros tinham sido atacados, uns morreram, outros feridos e alguns capturados.

No outro dia no Lobito, enquanto dormia, ouvia rajadas que rasgavam a madrugada. Era insistentes e cada vez mais intensas e próximas. Ninguém gritava nem corria, eu tinha medo, mas não sabia onde fugir, pois vivia numa ilha com apenas uma entrada e saída. E pelo mar não era sequer uma opção. Liguei o rádio para ouvir alguma coisa sobre as rajada e nada.

Foi então que, como que por milagre adormeci e no dia seguinte descobri que eram fogos de artifício, lançado na festa de casamento de uma família abastada.

Passando algum tempo, vinha eu de uma festa de madrugada quando vi o horizonte da costa repleto de navios… Todos iluminados… Pareciam fixar na nossa direção, não sei se era o efeito do copo, parecia até canhões apontados para nós…

Foi então que alguém tocou meu ombro sorrindo e disse:  aqueles eram navios pesqueiros que atracavam muito perto da costa para fazer arrastão…Que vergonha!

Escritora

afonte 

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