O 4 de Janeiro foi o culminar de reivindicações sobre a me-lhoria da qualidade de vida dos trabalhadores que operaram na COTONANG em finais de 1960.
Podemos considerar que as verdadeiras motivações foram a melhoria da qualidade de vida ou uma atitude nacionalista?
Num contexto colonial a reclamação de melhores condições salariais e de traba-lho, é já um acto político de monta, pois ela contraria em absoluto os ditames da ordem laboral vigente, e, em última instância, do próprio aparelho do Estado. Obviamente, que não estamos a falar de uma organização sindical, nem qualquer organização política entre os camponeses da Baixa de Cassanje, mas hoje a historiografia sobre este tema já revelou que esta região não ficou imune as influências do exterior, nome-adamente o que se passava no Congo, onde os vizinhos estavam mobilizados para o alcance da sua Independência. Acreditamos sim numa capilaridade de algumas ideias políticas, que sopravam dos ventos vindos do Norte daquela região.
Olhando para o envolvimento de figuras ligadas à UPA, como Rosário Neto e António Mariano Neto, que papel teve esta organização política na mobilização dos participantes?
Do que sabemos dos estudos conhecidos sobre esta matéria a participação destas figuras está na influência política que já tinham na zona, mas não há qualquer registo que tenham participado na mobilização dos camponeses para o acto em si. Embora a UPA tenha reivindicado muito mais tarde a sua participação indirecta como afirma René Pelissier (La Colonie du Minotaure, 1978). Há também informações que referem a influência do MPLA, nos acontecimentos por intermédio de algumas antenas que na clandestinidade faziam circular a sua propaganda política, pelo que dão nota da sua influência política na região de Malanje.
Digamos que a intervenção política, através destas duas organizações políticas, terá seguramente deixado algumas marcas, ainda que indirectas, porém motivando de algum modo, o crescendo da revolta que estoirou em Janeiro de 1961.Concluo que não será isenta de verdade, a influência destas organizações que no terreno mantinham no ar ideias que apontavam para a sublevação das populações contra as autoridades coloniais.
A escolha de Janeiro não foi por acaso e demonstra que os trabalhadores tinham consciência do peso da COTONANG na economia. Por favor, queira contextualizar este facto.
A escolha de Janeiro também de acordo com os estudos conhecidos, terá sido estratégica e foi bem preparada visando a protecção dos manifestantes. De acordo com René Pélissier, estava-se na época das chuvas e a tarefa da sementeira exigia um trabalho mais intenso, dificultando portanto o acesso à zona de estranhos. Consideraram os revoltosos que a sua acção não deveria facilitar qualquer possibilidade de resposta rápida, pois o acesso à região estava dificultada dado o período chuvoso que desenhava um cenário ainda mais sombrio na Baixa de Cassanje. Não imaginaram os camponeses que o perigo viria do ar com a aviação a bombardear as suas aldeias lançando bombas de napalm.
Que relação podemos estabelecer entre o 4 de Fevereiro e o 15 de Março de 1961 e o Massacre da Baixa de Cassanje?
As datas de 4 de Fevereiro e 15 de Março explicam a decisão das forças políticas em presença, MPLA e UPA de manifestarem a sua posição clara contra a manutenção do regime colonial, desta feita por via armada. A ligação destes acontecimentos com o evento da Baixa de Cassanje só pode ser entendida nas motivações dos vários intervenientes, que reconheciam de facto a necessidade de pôr termo à exploração a que estavam sujeitos os angolanos. O regime colonial tinha atingido o cume, o limite das forças nacionalistas, razão porque a luta política que já se fazia sentir o seu eco nos areópagos internacionais, exigia-se para tal mais explicações a Portugal, que insistia na sua manutenção em África e particularmente em Angola.
Existe alguma relação entre os movimentos religiosos provenientes do Congo (Tocoísmo e Kimbanguismo) e o levantamento de 4 de Janeiro?
O impacto da acção religiosa das denominações provenientes do Congo, naturalmente que se fez sentir na Baixa de Cassanje e outros pontos de Angola. A vinda de uma entidade “Maria” que tinha por missão libertá-los do jugo colonial, terá sido também motivação bastante para a aplicação imediata dos seus esquemas de luta, negando-se categoricamente a comparecer nos locais de trabalho, ao pagamento do imposto anual e a exigir a retirada dos colonos da COTONANG das suas terras.
O Tocoísmo e o Kimbanguismo apresentavam-se como expressões de uma fé de inspiração africana em contraposição ao cristianismo. As mensagens para a libertação vindas do Congo terão influenciado e também contagiado os revoltosos. Todas as manifestações sociais e políticas adensavam o ambiente de revolta. Propunham portanto o abandono dos colonos das suas terras.
Quanto tempo durou a resposta militar do Governo português, liderada pelo comandante Camilo Rebocho Vaz?
A acção do Governo português foi prolongada. Tendo-se iniciado a 4 de Janeiro os actos de revolta dos camponeses contra as autoridades administrativas da COTONANG. De início, a reacção das autoridades perante a envergadura das manifestações, ainda foi a busca de algum diálogo. Este procedimento revelou-se impraticável, perante a convicção dos camponeses, decididos que estavam na sua acção reivindicativa. Cerca de um mês depois, isto é, nos primeiros dias de Fevereiro, a partir de 6 de Fevereiro as autoridades coloniais decidem o bombardeamento com 8 bombardeiros daí se iniciam os ataques às aldeias. Digamos que o mês de Fevereiro foi o tempo usado para a chacina aos camponeses da Baixa de Cassanje.
Qual foi o número de vítimas dos dois lados?
Em termos gerais as principais vítimas foram os africanos que de acordo com as fontes e na sequência dos bombardeamentos terão perecido entre 5.000 a 10.000 camponeses. Do lado português refere-se apenas a morte de (2) dois soldados.
Alguns historiadores, como Alberto Pinto de Oliveira refutam o uso de bombas do tipo napalm. É verdade que o 4 de Janeiro foi o primeiro grande momento que o regime colonial aproveitou para testar a capacidade militar?
Não conheço qualquer intervenção do historiador Alberto Pinto que faça essa declaração, refutando o uso de napalm na reacção dos portugueses à revolta dos camponeses da Baixa de Cassanje. Na sua obra “História de Angola” publicada em 2015, o que nela se refere sobre esta matéria é justamente a violência extrema empregue pelo exército português com a actuação das 3ª e 4ª Companhias Especiais de Caçadores, que a partir do dia 5 de Fevereiro, dirigem-se às localidades da região, nomeadamente Quela, Montalegre, Sunginge, Caom-bo, Marimba, Mangando e Tambo Aluma, Lui, Milando e Marimba Anguenga. O primeiro lugar de combate dá-se em Teka dya Kinda, próxi-
mo do Quela. A aviação inicia o combate a 6 de Fevereiro bombardeando as aldeias, o que culminou numa autêntica chacina avaliada entre 5.000 a 10.000 mortos, de homens, mulheres e crianças, de acordo com os estudos conhecidos, nomeadamente de René Pelissier e Freudenthal. Não tenho conhecimento que esta acção punitiva com a aviação e os bombardeamentos dirigidos contra os camponeses da Baixa de Cassanje tenha servido para testar a sua capacidade militar, até mesmo porque há um grande desequilíbrio do ponto de vista das armas usadas pelos camponeses: canhangulos, ma-chados e facas.
Queira situar a região da Baixa de Cassanje hoje. É aceitável a transformação desta região como uma nova província, como reclamam algumas autoridades tradicionais?
Penso que esta zona por todas as valências que possui do ponto de vista agrícola, e cujas terras estão vocacionadas para a plantação do algodão e não só, que as mesmas possam garantir o desenvolvimento da região. A situação hoje da Baixa de Cassanje não é ainda a desejada, mas penso que os projectos que se estão a gizar irão atender as necessidades locais e sobretudo contribuir para o seu crescimento económico. São portanto justas as reclamações das autoridades tradicionais para a mudança do estatuto daquela região.
Sente que as novas gerações conhecem a importância do 4 de Janeiro?
À medida que o tempo passa julgo que as acções em curso que visam a divulgação desta data e dos acontecimentos que tiveram lugar, vão reforçando esse conhecimento. Não há um vazio que não dê o conhecimento devido sobre esta data. As celebrações que ocorrem todo os anos servem justamente para a chamada de atenção da sociedade para a importância da valorização do lugar enquanto espaço de memória. Precisamos continuar a trabalhar, nomeadamente nos órgãos vocacionados para que o 4 de Janeiro seja celebrado com acções de vulto que contribuam para o seu melhor conhecimento.
Não sendo feriado, esta efeméride não subalterniza a data em detrimento do 4 de Fevereiro, que actualmente tem uma carga partidária do MPLA?
Do meu ponto de vista esta efeméride tem uma importância capital, pois ela reflecte um evento de grande relevo da nossa História contemporânea. Um episódio marcante que ceifou a vida de milhares de angolanos, homens, mulheres e crianças, não deve ser esquecido, é sempre evocado para que as novas gerações saibam da sua importância e valor. A exaltação da data não passa apenas pela consagração do feriado, mas pela forma como a sociedade a celebra e divulga. Reclama-se dos órgãos competentes que se estude e divulgue esta data, para o nosso tributo às famílias que ali pereceram, em nome da dignificação e valorização do Homem angolano.
O 4 de Fevereiro é uma data de celebração com feriado, pois marca o início de um processo desencadeado por um Movimento de Libertação Nacional, o MPLA que ousou desafiar as autoridades portuguesas, declarando abertamente o recurso às armas para a conquista da Independência, dado a intransigência da potência colonial em não aceitar as negociações. Julgo que essa marca partidária que se lhe atribui por conta da sua origem, deve ser substituída por uma mensagem mais global da luta dos angolanos pela dignificação do Homem angolano. Ambas as datas têm em nosso modesto entender, o mesmo significado na perspectiva do que representam a luta travada pela Independência de Angola. A celebração deve ser sempre entendida como a nossa homenagem e tributo prestados aos seus promotores pelos sacrifícios consentidos que contribuíram grandemente para a liberdade e independência dos angolanos, independentemente das organizações políticas que estiveram na base da sua efectivação.
Jornal de Angola