Quando se fala da história das artes plásticas em Angola, particularmente do período pós-independência, um nome, em particular, salta à vista, quer pela sua persistência, quer pela qualidade das suas obras: António Gonga.
Considerada uma das principais figuras das artes plásticas angolanas, o artista concedeu entrevista exclusiva à ANGOP, na qual fala sobre a sua trajectória artística, sobre os desafios que se colocam à classe e sobre o seu futuro no mundo das artes.
Nesta conversa, avança alguns planos que quer ver materializados a curto e médio prazos, com destaque para a reabertura do projecto de formação de crianças e jovens, sem custos, através da Associação Sol de Cacimbo – Artes e Ideias.
Durante a entrevista, António Gonga dá, igualmente, “pinceladas” sobre a situação social e política do país, afirmando, a esse respeito, que os angolanos devem “revisitar” os fundamentos da paz e continuar a cultivar o espírito de tolerância.
Eis a íntegra:
ANGOP- O mundo atravessa, desde finais de 2019, uma crise sanitária, económica e social sem precedentes, com repercussões graves em quase todos os sectores. Enquanto artista, qual tem sido o impacto da pandemia na sua agenda pessoal?
António Gonga (AG) – Os Decretos Presidenciais vêm sendo a Bíblia orientadora de atitudes. Como é para todos, eles e a consciência desse mal moldaram o meu comportamento na rotina do fazer cultura e arte. Não faço performance nem happening que recomendaria a uma actuação relacional com o público. Tradicionalmente, o trabalho do artista plástico é introspectivo, e o seu acolhimento nos processos de criação é uma constante. Pena é que, por causa da Covid-19, interrompamos as acções filantrópicas de formação artística que vimos fazendo há alguns anos com crianças e jovens na comunidade, por meio da Associação Sol de Cacimbo – Artes e Ideias.
ANGOP – E tem conseguido manter o seu mercado?
AG – Não sou um artista agenciado, infelizmente, por isso tenho dificuldades de caracterizar que mercado legitimado existe. Parecem-me ainda muito informais os circuitos comerciais da arte em Angola, porquanto, acto contínuo, são ainda os expatriados que trabalham em Angola, que compram a nossa arte, não obstante estar a emergir, nos últimos anos, uma plêiade considerada de segmentos sociais distintos, no meio urbano, com o rótulo de coleccionadores de arte – senso comum –, e a discrição de umas poucas personalidades das elites angolanas que vão disputando já alguma arte.
ANGOP – Diante de tantas contrariedades, é possível falar em futuro promissor da cultura angolana, em geral, e das artes plásticas, em particular?
AG – As contrariedades são uma escola para a vida. Multiplicou-se a consciência resiliente para dar volta aos problemas nos processos produtivos da indústria cultural. E, por isso, estamos em crer que a cultura angolana, em geral, e as artes, em particular, poderão conhecer bons tempos. Temos de continuar a revisitar a paz e a estabilidade política com tolerância, para que a harmonia interna possa galvanizar o diálogo intercultural, pilar sem o qual continuaremos contíguos na nossa cosmovisão, ainda por redimir e legitimar.
ANGOP – Diante disto, que alternativas tem tido para continuar a fazer arte?
AG – É do senso-comum o entendimento de que o ganha-pão do artista plástico é a venda de obras de arte, exclusivamente, mas não o é. Noutras paragens, os serviços nas variantes da pesquisa artística assistida e do ensino das artes são também práticas remuneráveis dos serviços de arte. A arte, para mim, nunca a concebi com o pretexto de ganha-pão. A arte sempre foi a canadiana da minha peregrinação existencial consciente. Alguma renda disso resultante é pura consequência do ofício.
ANGOP – Em concreto, que análise faz sobre as artes plásticas em Angola?
AG – As artes plásticas angolanas estão num bom momento, apesar da Covid-19. O futuro, quanto a nós, é promissor e, quanto a esse processo que está a ocorrer, é mitigado já pela Academia das Artes ora institucionalizada em Angola, que, apesar de ainda em potência para a intervenção dela almejada, já insuflou os primeiros técnicos licenciados no mercado.
ANGOP – Mudando de foco, quem é António Gonga enquanto cidadão comum?
AG – Enquanto cidadão comum, sou o António Gomes Gonga, marido, pai, mano, tio, amigo e camarada com todos que, mesmo constrangidos com a minha petrificada humildade e modéstia, me aceitam como sou, felizmente.
ANGOP – Quando começou a sua caminhada pelo mundo das artes?
AG – Nos anos 1970 e anteriores, na aurora da minha puberdade, testemunhei no meu kimbo (Kitende-Aldeia Viçosa, Dande Quitexe/Uíge) o costume de os namorados trocarem “postais” tipografados e lenços de bolso bordados com versos de poesia e arranjos florais. Manifestado então o meu talento como desenhista, os menos afortunados vinham socorrer-se dos meus préstimos para desenhar e escrever caligraficamente bem. Passei, então, a receber muitas encomendas para reescrever versos e desenhar sobre tecido para o bordado, longe de pensar que esta prática constituía ocupação profissional para muito boa gente. Só em 1987, em contacto com a UNAP, sob indicação do amigo Tomaz Kizembe, que já desfrutava da arte no convívio com o pintor-arquitecto Tiupa Fonseca, se emancipou em mim o senso da prática artística como ocupação profissionalizante, até aos dias de hoje.
ANGOP – O que fez com a sua primeira obra?
AG – Não faço a menor ideia.
ANGOP – Em média, quanto tempo leva para pintar um quadro?
AG- É aleatório. Tenho obras começadas há cinco anos até agora por concluir. Mas há momentos em que, num ápice de 24 horas, se dá por concluída uma obra.
ANGOP – Já agora, qual tem sido a fonte de inspiração para o seu trabalho?
AG – A fonte de inspiração para as minhas preposições estéticas foi sempre a “vida” e a “vivência” a sós e em sociedade.
ANGOP – O que representam, para si, as artes plásticas?
AG – As artes plásticas representam, para mim, o “arcano” maior da minha existência.
ANGOP – Entre a realidade e o imaginário, o que mais prazer lhe dá pintar?
AG – O mundo sensível manifesto é um magnífico protótipo de signos para a mimese na representação dos arquétipos do imaginário. Ambos concorrem nas mecânicas operativas da minha poética, estabelecendo um diálogo prazeroso entre o mundo objectivo e o subjectivo.
ANGOP – O mercado angolano não dispõe de muita matéria-prima para o trabalho que desenvolve. Como tem conseguido manter o seu stok de trabalho?
AG – Mercê dos imputes materiais herdados da arte ocidental, estamos sempre em presença de opções arrojadas: da tradição moderna e das extrapolações contemporâneas. Para mim, associo-me aos laivos das técnicas tradicionais das belas artes com os materiais alternativos possíveis, e também acoplo os resíduos sólidos da vida quotidiana, numa apropriação dialógica com a assemblage e redy-made dos dadaístas, marcadamente a matriz discursiva da “Arte-Póvera”. Mas procuro integrar uma miscigenação intertextualizada com as práticas e técnicas da “arte clássica angolana”, a exemplo dos Nkisi’s, que é prolífera na variação dos meios dos seus processos de criação. Portanto, o material nunca constituiu um empecilho para realizar o meu trabalho.
ANGOP – Já agora, quanto custa uma obra de António Gonga?
AG – Depende da circunstância ou momento no passe da obra. Porém, confesso nunca ter consultado um avalista ou um ente entendido no comércio de obras de arte.
ANGOP – Que projectos tem preparado a curto e médio prazos?
AG – A curto e médio prazos, gostaria de trazer para a minha comunidade – Kanjinji, Viana, arredores do Ateliê Transumâncias Gonga – uma “exposição permanente” da colecção que está no fim da forja e deixá-la sem custos à contemplação dos estudantes das escolas circunvizinhas para a educação complementar decorrente da disciplina de Educação Visual Plástica (E.V.P.) do Sistema de Educação, voltar a pôr a funcionar o projecto de formação de crianças e jovens sem custos, através da Associação Sol de Cacimbo – Artes e Ideias, se a Covid-19 nos alforriar.
Angop