O plenário do Tribunal Supremo decidiu manter as condenações em primeira instância dos arguidos do ‘caso 500 milhões’, apesar de os resultados da votação terem produzido uma espécie de empate técnico.
Dos oito juízes que apreciaram o recurso, quatro apresentaram declarações de votos vencidos, invocando, entre os argumentos de destaque, o facto de o Tribunal não ter valorado como matéria de prova as declarações do ex-Presidente da República.
No decurso das sessões de julgamento, José Eduardo dos Santos respondeu a uma carta do Tribunal, a pedido da defesa do ex-governador do Banco Nacional de Angola (BNA), em que confirmou ter autorizado a operação que conduziu à assinatura dos contratos e à consequente transferência dos 500 milhões de dólares. Valores que, segundo a defesa, serviriam de garantia para a capitalização inicial de um fundo estratégico de geração de recursos para a economia angolana.
No entanto, após ter recebido e autorizado a leitura da carta, que foi considerada até pelos juízes nas sessões de julgamento como “fundamental para a descoberta da verdade material”, o Tribunal decidiu desconsiderar o documento entre os meios de prova, justificando-se que o seu conteúdo se assemelha a “uma reprodução da contestação apresentada pela defesa de Valter Filipe”.
Norberto Capeça, um dos quatro juízes com votos vencidos, escreve, entretanto, na sua declaração, que “a não audição do então Presidente da República põe em causa o princípio do contraditório e, no mais, um direito fundamental, que é o direito a julgamento justo e conforme”.
“Estamos perante a omissão de uma formalidade que pode ter influído na decisão, o que, a meu ver, representa uma omissão suficiente para que este Tribunal Pleno e de Recurso julgue nula a decisão”, insiste Capeça.
Ao apontar que o Tribunal não criou as condições para a audição do declarante José Eduardo dos Santos, Teresa Buta, outra juíza com voto vencido, declara que a instância “omitiu o cumprimento de uma formalidade imposta legalmente, que influenciou no conhecimento do mérito da questão, que é susceptível de conduzir à nulidade do acto e, quiçá, do acórdão”.
Numa fundamentação de 11 páginas, a juíza Joaquina Nascimento ataca o acórdão, apontando vários aspectos da metodologia doutrinária que não foram observados pelo juiz relator Miguel Correia. “Por um lado, vislumbramos que a fundamentação absorvida pelo douto acórdão e respectiva motivação reiterou tudo quanto foi apreciado e descrito em primeira instância.
Por outro lado, o acórdão recorrido não teve em atenção a necessidade de especificar o meio ou a via por que obteve cada facto que deu como provado, limitando-se a frisar, na motivação da matéria de facto, que extraiu as provas de determinados documentos, declarações ou depoimentos e argumentos sem ter tido o cuidado de especificar qual é o meio de prova que, in concretu, permitiu obter esta ou aquela prova dada como assente na fundamentação de facto”, detalha a juíza, finalizando que as falhas do acórdão levam “à incompreensão das penas aplicadas”.
Ao declarar que “a legitimidade do juiz decorre da obediência à Constituição e à lei”, a juíza Anabela Vidinhas observa que o juiz relator cita, “de forma sofrível, a doutrina”, com considerações “sem qualquer relevância para o caso concreto, proferindo-se juízo de valor sobre a putativa motivação”.
A juíza escreve que lhe “foi cobrada a declaração de voto vencido, quando, em boa verdade e em consciência do Tribunal Pleno e de Recurso”, requereu que o relator melhorasse o projecto, face a algumas questões que, ao longo da apreciação e consequente discussão foram arguidas.
“Sobretudo aquela relacionada com o facto de se saber se, efectivamente, o crime de burla por defraudação se consumou ou não, porquanto não se observa, face aos factos apresentados, elementos integradores do tipo que nos conduzam a essa conclusão sem qualquer dúvida”, sublinha.
Dois penalistas consultados pelo Valor Económico notam que, além da carta de José Eduardo dos Santos, o Tribunal “não valorou praticamente qualquer das provas apresentadas em defesa dos arguidos”, incluindo os pronunciamentos de declarantes e até de testemunhas.
Ao longo das sessões de julgamento, vários declarantes do BNA asseguraram, por exemplo, que Valter Filipe tinha competências para movimentar até 500 milhões de dólares, no âmbito da política de investimentos do BNA, e garantiram não ter havido evidências de tentativas de se ocultar a operação, contrariando a tese do Ministério Público.
Valor Económico