• 5 de Dezembro, 2024

“Vítimas de assédio sexual tendem a não dar relevância a esse mal”

 “Vítimas de assédio sexual tendem a não dar relevância a esse mal”

Nos últimos tempos, têm surgido, de forma isolada, algumas denúncias de casos de assédio nas instituições de ensino da província de Benguela. Em entrevista ao Jornal de Angola, o jurista e docente universitário Vicente Neto lamenta a falta de cultura de denúncia por parte das vítimas, o que faz com que o assédio sexual tome proporções assustadoras a nível das instituições de ensino. “Algumas vítimas de assédio sexual tendem a não dar a relevância que se impõe a esse mal que enferma e macula indubitavelmente a essência e o papel social que têm as instituições de ensino”.

Em que consiste o assédio?
Assédio consiste numa perseguição insistente e inconveniente que tem como alvo uma pessoa ou grupo específico, afectando a paz, dignidade e liberdade. Existem vários tipos de assédios como sexual, moral, psicológico, virtual, judicial, entre outros. Dos tipos acima referenciados, dois têm maior destaque, o assédio moral e sexual, este último com maior preponderância no domínio das relações interpessoais de trabalho e não só, onde há uma tendência de dependência. O assédio sexual merece uma atenção especial, porque é um tipo de violência que se caracteriza pela iniciativa de determinada pessoa se insinuar sexualmente para outra, directa ou indirectamente, com vista a ter desta última um benefício sexual e criando nela um sentimento de extremo desconforto, uma vez não existir consentimento. Este tipo de assédio é crime, vem tipificado na Lei nº 38/20 de 11 de Novembro, Lei que aprova o Novo Código Penal, no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual. Esse crime é punido com pena de prisão até 3 anos e, caso a vítima seja menor, a pena é de 1 a 4 anos de prisão – artigo 186º do Código Penal. O Jornal de Angola tem recebido algumas denúncias de casos de assédio nas instituições de ensino.

Será um fenómeno com raízes profundas no ensino público e privado da província de Benguela?

Ora, basta que existam relações interpessoais para haver questões relacionadas com assédio moral ou sexual. Logo, no ensino parece ser um facto que faz eco e deve a todos os níveis ser combatido pelas repercussões daí advindas. Tenho 12 anos de docência, 8 dos quais no ensino superior, e tenho testemunhado muitas situações de assédio nesse subsistema de ensino. Entendo que a tendência ainda seja de encarar o professor como o protagonista primário dessa prática. Contudo, importa referir que não é exactamente assim, embora, admitamos, uma margem considerável ainda pende maioritariamente para esse lado. Todavia, os professores podem, em muitas ocasiões, serem as vítimas. Anteriormente, era o professor, director, decano ou reitor que assediava as estudantes. Hoje, o assédio, seja moral ou sexual, também já parte do estudante, com objectivo de ter algum benefício, em notas e aprovação. Outro aspecto importante tem a ver com a tendência do assédio não ser unicamente de homem para mulher, ou seja, já há um número crescente de homens que são assediados.

Nesse caso, o que devem fazer às vítimas?

As vítimas de assédio moral e sexual, sempre que se sentirem constrangidas com práticas do género nas instituições de ensino, devem ao abrigo do Regulamento Interno/Estatuto Académico de cada instituição, se dirigir ao órgão competente para questões disciplinares e apresentar a queixa/denúncia. Se a vítima for estudante, pode se dirigir à Associação dos Estudantes, ao Gabinete de Apoio ao Aluno, ao Coordenador de Turma, Turno ou Curso e em última instância, caso não seja bem sucedido, fazer chegar a denúncia ao chefe de Departamento, director, decano e até mesmo ao reitor. Caso a vítima seja um professor, o procedimento poderá ser o mesmo, diferenciando-se somente nos órgãos em que deve se dirigir para resolver essa questão. Não obstante a essa garantia interna/institucional, com vista a atender situações de assédio há ainda, do ponto de vista jurídico-legal, a possibilidade de quem se sente vítima apresentar uma queixa-crime junto do Serviço de Investigação Criminal e da Procuradoria-Geral da República, com vista a requerer a responsabilização jurídico-penal do infractor, caso se comprove por via judicial a veracidade dos factos arrolados pela suposta vítima, que deverá, contudo, assegurar que tais práticas configuram mesmo assédio, sob pena de ela incorrer na prática dos crimes contra a honra, injúria, difamação, e calúnia, caso o acusado entenda apresentar, também, uma queixa-crime.

 A falta de denúncias não significa que o problema não exista?

É exactamente nesse quesito que se deve melhorar. As instituições de ensino devem realizar campanhas que desincentivam tais práticas e desenvolver estudos científicos mediante inquéritos e não só, no sentido de apurar os níveis e as incidências de prováveis práticas de assédio dentro das instituições. E obviamente, deve haver um método assente e não dúbio que dê tratamento adequado e objectivo aos distintos problemas desta natureza, podendo o mesmo redundar em incentivo para que as denúncias sejam maiores e assim se minimize essa tendência nas instituições de ensino.

O medo de sair do anonimato e das consequências de acusar um professor faz com que a maioria dos casos de assédio sexual nas escolas não seja reportada?

Pode ser uma das motivações. De facto, algumas vítimas de assédio sexual tendem a não dar a relevância que se impõe a esse mal que enferma e macula indubitavelmente a essência e o papel social que têm as instituições de ensino. Outro aspecto não menos importante, algumas vezes exagerado, é pensar nas consequências do ponto de vista de sanções disciplinares a que ficam submetidos os autores dessa prática. Lamentavelmente, por falta de denúncia faz com que o assédio tome repercussões consideráveis, como referi, colocam em causa o escopo das instituições de ensino.

 Conhece algum caso com processos ligados a assédio e envolvimento sexual entre professores e alunas?

As minhas respostas assentar-se-ão sempre na óptica pouco discriminada, uma vez que o assédio não é prática exclusiva de quem tem vantagem perante outrem, mas o contrário também sucede e vai tomando proporções também preocupantes. Indo de concreto à pergunta que coloca, já testemunhei casos de assédio com processos que culminaram mesmo com a expulsão de professores. Na qualidade de advogado, também domino alguns processos que correm trâmites junto de órgãos judiciais, em consequência de acções de assédio protagonizadas em sede de instituições de ensino.

Acha pertinente a existência de uma plataforma onde os visados possam expressar e expor um tipo de comportamento que, eventualmente, se regista na instituição de ensino?

Penso ser uma mais-valia. Será como um depósito ou caixa de reclamações, virtual e físico, onde todos aqueles (professores/estudantes e outros) que se sintam na situação de assediados possam, efectivamente, apresentar com dados e elementos de prova clara sobre os factos que recaem ao mérito da denúncia. E, por parte da instituição de ensino, são empregues os métodos objectivos para apurar a veracidade dos factos e existirem pessoas suficientemente idóneas dentro das instituições de modo a lidar com a responsabilidade que requer em processos dessa natureza.

 O que deve ser feito para as vítimas destas acções?

Às vítimas recai a possibilidade de serem indemnizadas pelos danos que lhes forem causados devido ao assédio. Devem, ainda, as vítimas serem acompanhadas por profissionais de saúde, médicos, psicólogos entre outros, com vista a assegurar a reinserção social sadia das mesmas.

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