• 17 de Abril, 2025

Estado, Governo e Poder nas sociedades Bantu-Mbanza Hanza

 Estado, Governo e Poder nas sociedades Bantu-Mbanza Hanza

No ensaio sobre a visão de Estado, Governo e Poder nas sociedades ocidentais publicado em Fevereiro passado1, foi dito que é das sociedades ocidentais de quem herdamos a visão de Estado que mantemos e sobre a qual estabelecemos os Estados africanos actuais. Foi apresentado igualmente, naquele artigo, aquilo que designamos chamar de «o dilema do poder». Se quiséssemos fazer um paralelismo sobre Estado, Governo e Poder entre as sociedades ocidentais e as sociedades bantu que se podia dizer? Como é entendido o Estado, Governo e Poder nas sociedades bantu? Como é explicado aquilo que chamamos de «o dilema do poder» nas sociedades bantu?

Para explicarmos o Estado dentro da visão bantu é preciso antes entendermos quem é o Muntu. MAKADILU (2021:13)2 citando Fu Kiau, Nhoma e Kwesi explica que “nas culturas africanas aqueles que defendem as leis ou regras divinas são justos, eles vivem uma existência justa, esses são «BaNtu».” LM Dumizulu da Maarifado Development Organization diz que segundo os nossos ancestrais, a partícula «Ba» do nome «Bantu» “é a centelha divina, a identidade e o invólucro das nove almas do muntu. Ba é a centelha que veio coabitar e activar o Ntu.” E «Ntu» “é a partícula das divindades ou neters. A partícula responsável em manifestar no muntu o aspecto, a força, o espírito ou o poder de neter mesmo neste corpo material3.” MAKADILU acresce dizendo que “a nossa cultura nos ensina que temos uma origem divina e, portanto, a nossa essência é divina, é essa natureza superior que devemos sempre nos esforçar para viver de acordo. O «Muntu» é um ser divino, uma pessoa que vive de acordo com a sua natureza superior4.”

Os bantu construíram a sua visão de mundo forjando-a à sua essência. Makota Valdina, africana nascida no Brasil, iniciada na ordem espiritual Kongo explica por exemplo que segundo a ordem Kongo «o mundo é Fokolo dya Kanga Kalunga mu dyambu dya Moyo». O mundo é um invólucro hermeticamente fechado por Kalunga ou Nzambi por causa da vida. É um fokolo que foi preparado para permitir e albergar a vida tal como a temos e a conhecemos hoje.

Amadou Hampaté Bâ, Kekete da «Tradição» Oral, iniciado na ordem Komo do Mali falando sobre o universo visível diz que «nas tradições africanas o universo visível é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo movimento. No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário5».

A partir das visões apresentadas acima, o Muntu derivou o entendimento de que a vida é ‘um dom recebido de Nzambi, o único que a possui por si mesmo, que não precisa de acrescentá-la nem a perde. É também um dom recebido da comunidade e que só pode desenvolver-se no seu seio6.’ A vida na comunidade implica o estabelecimento de relações7.

Assim sendo, na perspectiva Bantu o Estado tem um outro entendimento e uma forma particular de se fazer existir. O Estado não é entendido e nem é definido como «uma instituição criada para definir a soberania de um território definido8» como no ocidente, uma vez que a soberania para o muntu reside na vida. A vida se sobrepõe a terra e é a razão da criação do mundo e do universo material. A vida é um dom, mas a terra é uma criação. Por ser um dom recebido de Nzambi, o único que a possui por si mesmo, que não precisa de acrescentá-la nem a perde, a vida é igualmente um dom da comunidade uma vez que só se pode desenvolver no seu seio. A comunidade para o bantu é extensível a vasta unidade cósmica, estabelecendo uma pirâmide vital9 que se estende do mundo visível (minerais, vegetais e o muntu) ao mundo invisível (antepassados, espíritos, divindades, chasmo e o imanifesto)10. É esta a razão porque o muntu não se detém em fronteiras, para si, o mundo todo é seu espaço.

O Estado nas sociedades bantu não é o garanto dos direitos e liberdades fundamentais uma vez que ninguém precisa de ter direitos garantidos por outrem, seja pessoa ou instituição, todos nascem com direitos: “no Egito antigo, nos tempos antigos, a mulher tinha os mesmos direitos que o homem, mas havia uma clara distinção de papéis para cada um. Não havia questões de Direitos Humanos porque todos tinham direitos11”. Todas as instituições, sejam públicas ou privadas integram o dom que é a comunidade e são regidas na base daquilo que o Dr. John Henrick Clarke chamou de “mais poderoso que a Lei – o Costume12”, estabelecido na base dos princípios de Maat. Não existe a ideia de cidadãos cometerem crimes contra o Estado, afinal o muntu integra uma vasta unidade cósmica onde tudo se liga e tudo é solidário.

Desta feita, o Estado para o muntu há de ser a materialização da sua unidade existencial primária a família, o seu clã e a comunidade [terra e língua]. Onde se funda o seu clã, ali estão os seus antepassados, as divindades e o seu ser. Os Estados e Impérios afrikanos de antes da invasão colonial eram na verdade arranjos congregados de clãs, antepassados, divindades e costumes em torno de um referencial comum – a vida e a obrigação de a conservar, defender e acrescentar13.

O Dilema do Poder

O dilema do poder nas sociedades ocidentais fez nascer uma estrutura de poder muito complexa com conceitos, instrumentos e visões igualmente complexos. Diríamos que o ocidente construiu a sua visão de Estado, Governo e Poder na base de deslocação e ressignificação. Vimos por exemplo que a soberania foi deslocada da vida para a terra. A vasta unidade cósmica confinou-se a definir a soberania de um território cuja limitação será sempre fictícia. O referencial comum

– a vida e a obrigação de a conservar, defender e acrescentar, passou para o poder do Estado cujo exercício é que passou a garantir, proteger e defender a vida e a realização das pessoas. Como resultado “a era da razão [tem se tornado] um desastre, basta olhar para o mundo ou para a terra como prova. A destruição da natureza, a poluição, a destruição dos valores familiares, a espiritualidade, o desgoverno, etc.14”, lamenta Dumizulu.

Qual é o quadro em Áfrika? Os nossos ancestrais do Vale do Nilo nunca pensaram que houvesse uma separação entre o homem e o cosmo, entre o universo visível e o universo invisível, o reino subjectivo e o reino manifesto objetivo, pois os neters ou ancestrais ao mesmo tempo que estavam mortos, estavam vivos. Tudo vem do invisível para o visível e retorna do visível para o invisível15. Foi este entendimento que esteve na base de terem estabelecido uma civilização com tamanha elevação civilizacional, o Egipto antigo.

Como isso foi possível? “A única aliança divina alguma vez estabelecida entre a humanidade é conhecida como Maat, a lei divina da harmonia. Maat foi um presente divino e é um conceito do Sagrado Divino Afrikano, a personificação da verdade, justiça, ordem social e harmonia16.” Se mantida, resulta em sucesso político, Estado presente e fertilidade natural. Maat está dependente do Estado ou do Faraó e da sua comunicação permanente com o mundo divino. Foi por isso que os bantu estabeleceram o poder faraónico: “nós nos conectamos com as estrelas [o cosmo] através do Faraó, é por isso que estabelecemos o poder faraónico. O nosso modelo ancestral de poder era baseado no Maat. O dever do Faraó era defender Maat para manter e restaurar a ordem17.”

O modelo Faraónico de poder foi chamado nas sociedades ocidentais de Monarquia e ao Faraó chamaram de Rei. A Áfrika toda antes da invasão colonial não conheceu outro modelo governativo senão este. Realizar Maat como a personificação da verdade, justiça, ordem social e harmonia é o mesmo que realizar o que chamamos de referencial comum – a vida e a obrigação de a conservar, defender e acrescentar. No reino do Kongo por exemplo, que foi estabelecido como um Estado-Providência, para realizar o desiderato do Maat o rei precisava manifestar 7 facetas18:

MWENE KONGO O Provedor. O rei na função de Mwene deveria ser aquele que providencia comida à sociedade.

NE NKAYI Distribuidor. O rei na função de Nkayi deveria ser aquele que divide, distribui, uma pessoa liberal, generosa, amiga e camarada.

MFUMU’A KONGO O Chefe. O rei na função de Mfumu deveria exercer a autoridade por meio da eleição, na base do princípio “tumila Mfumu, saka ye Nganga”, «elege-se o chefe, mas inicia-se o Sacerdote». Mfumu vem de fumana, a palavra fumuna significa pedir esmolas, ser pedinte, ou fazer-se triste a fim de amolecer o coração do povo a seu favor.

NTOTILA Unificador. O rei na função de Ntotila deveria unificar os vivos e os mortos e resolver o problema das separações do reino.

MANI O Aperfeiçoador, Guia. O rei na função de Mani deveria finalizar e aperfeiçoar as funções de Mwene e Ntotila.

MUTINU Supremo soberano. O rei na função de Ntinu deveria ser Rei-Grande sobre Mwene, Ntotila e Mani. Deve ser consagrado por uma outra autoridade, Nsaku ne Vunda, pois os «Mintinu» são estrangeiros na montanha real onde são Juízes, segundo a tradição.

A questão da Soberania e da Legitimidade do Poder

Já vimos que a soberania entre os bantu reside na vida e que não se faz separação entre o homem e o cosmo, entre o universo visível e o universo invisível. Como eram legitimados os Faraós e reis ao poder em Áfrika? Eram legitimados através da legitimidade natural ao poder. Nas sociedades Bantu o poder reside nos primogênitos. Ou seja, são todos os nascidos primogênitos que têm o direito natural ao poder.

De onde vem a necessidade da investidura, o matrialinismo do poder bantu e a referência no reino do Kongo de que os “Mintinu são estrangeiros na montanha real” ou ao trono?

A resposta a estas perguntas pode ser encontrada na história da fundação do reino do Kongo. A história política da sociedade Kongo nasce de três pessoas, filhos de uma união entre Mazinga, a mãe e Nimi, o pai. Do casamento de Mazinga e Nimi nasceram três filhos: Vita a Nimi, o primogênito, também chamado de Nsaku por ter o direito natural de exercer autoridade, abençoar, vigiar e orientar os irmãos. Mpanzu a Nimi, o segundo e Lukeni Lwa Nimi, a caçula. Reza a história que Lukeni não gostava de trabalhar por isso a sua descendência foi chamada de Lwezi, gente sem actividade ou ainda Mfumu, que designa um mendigo. Assim, Lukeni foi tomada como a «Munguti a Mfumu» ou seja, “Mãe dos mendigos”, mas mais tarde, “Mãe das Autoridades”, quando Mfumu passou a designar autoridade19.

A história prossegue dizendo que Nsaku ou Vita a Nimi decidiu não exercer o seu direito natural de autoridade, assim como fez NeSoyo-Dya-Nsi noutra versão da história da fundação do Ki’Ntinu-Kye-Kongo ao negar-se a abandonar as terras e o trono do pai em Soyo (razão pela qual se dizer que os Nsaku são originários de Soyo) de quem era legítimo herdeiro e sucessor, tendo sido indicado para o trono do Kongo em Nkumba-wu-Ngudi ou Mbanza Kongo, NeKongo-Dya-Nsi segundo filho do patriarca20. Ficou resolvido por Vita a Nimi e Mpanzu a Nimi que o poder administrativo ou real ficaria reservado ao vumu de Lukeni ou Kizinga, sua irmã. Seria deste vumu [linhagem] que nasceriam os reis para o Ki’Ntinu-Kye-Kongo. Theophile Obenga esclarece o porquê: “dirigir uma linhagem (tchivumu) é para aqueles que pertencem ao mesmo ventre (vumu), ao mesmo sangue materno; dirigir um clã (likanda ou ainda tchifumba) é para aqueles que estão juntos pela mesma mão (kanda) sobre um mesmo território (fumba); dirigir um país (nsi), legado ancestral inalienável, é, aqui e acolá, fazer circular o sangue, o sangue dos ancestrais fundadores21.”

Por não serem legítimos ao trono, uma vez que não são primogênitos, os descendentes de Kinzinga deveriam ser consagrados ao trono pelo Nsaku o detentor do direito natural de exercer autoridade. A investidura neste caso é um acto de autorização ou aprovação. Está assim explicada a razão de se dizer que “os Mintinu são estrangeiros na montanha real onde são

Juízes”. Ao ter recaído sobre Lukeni a responsabilidade de gerar os reis para o trono, nasceu assim o que podemos designar de matrialinismo bantu.

Percebemos com esta análise que as estruturas e visões de poder estabelecidas pelos nossos ancestrais se distanciam em matéria e substância das estruturas e visões ocidentais. O mundo e as sociedades humanas evoluíram sim, mas é retrocesso pensar-se que a nossa evolução deve significar sermos outros e nos realizarmos através de visões emprestadas. A nossa evolução deve significar sermos capazes de mergulhar nas estruturas e visões estabelecidas pelos nossos antepassados e daí forjarmos o nosso novo mundo. Repetimos o apelo a necessidade dos povos afrikanos terem que despertar para as responsabilidades que lhes aguardam forjando novas formas de organização política que se alinhem a sua herança ancestral, perpetuando o legado de seus ancestrais assente na virtude, na exuberância intelectual e na capacidade de obrar a magnificência para gerar o equilíbrio a justiça, a harmonia, a autossuficiência e a paz na comunidade ao invés de continuarem se esfolando em tentarem ser melhores em sistemas e modelos governativos que não lhes levam em conta e que foram concebidos para lhes manterem numa perpétua condição de dependentes e dominados.

Mbanza Hanza, O Grande Elefante, FPR!

10 de Março de 2022

Referências:

MAKADILU, Sebastião A., A Implantação do Kimbanguismo em Angola – Memórias do Papa Seba, Luanda, 2021 (Manuscrito não publicado), p. 13

História Geral da África, I: Metodologia e Pré-história da África, ed. Joseph Ki-Zerbo. – 2.ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010, p. 227 pdf.

ALTUNA, Raul R. de A., Cultura Tradicional Bantu, ed. 2014, Paulinas, pp.57-62; 63-65.

HANZA, Mbanza., Estado, Governo e Poder nas sociedades ocidentais, 2022, p. 1-4.

LM Dumizulu., They have more than Power, Youtube, 2021. https://youtu.be/XuZGiZnT_28

CLARKE, John H., Law and Order in African Society before Slavery, Youtube, s/d https://youtu.be/vfd-hfXFsBU

LM Dumizulu., Why Egypt Collapsed? Youtube, 2021. https://youtu.be/pfFdACf2-Xw

BATISKAMA, Patrício., As origens do Reino do Kongo, Mayamba Editora, Luanda 2010, pp. 187-201; 231-232.

KILOMBO, Joaquim., Simon Kimbangu – O Homem e a sua Missão, Eco7 Investimentos Lda, 2016 Luanda, pp. 71-75

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