Manuel Rui*
Meu irmão mais velho levou-me pela mão ao cinema, que era num armazém na baixa de Nova-Lisboa, hoje Huambo. Andámos uns quilómetros.
Era o meu primeiro filme, não tínhamos rádio e o mais avançado instrumento era um candeeiro petromax e outros pequeninos a petróleo, feitos por funileiros com restos de latas de conservas, uma torcida de pano que entrava no petróleo e a chama de fumo, lembro-me quando dormia com candeeiro desses aceso, de manhã, tinha as narinas pintadas de carvão.. O filme foi o “Frei Luís de Sousa.” Só muito mais tarde, quando tive de estudar esse livro, me fartei de rir por naquele dia ter ficado cheio de medo quando perguntaram “Romeiro quem és tu?” E a resposta: “Ninguém.”
Depois foi o Robin dos Bosques que bati palmas. Gostei daquilo de ajudar e proteger os pobres, acho que o amigo era o João Pequeno e o rei Ricardo Coração de Leão. A seguir vieram o Tarzan e as toneladas de filmes alijando os índios como bandidos e os cobóis como os grandes vencedores de cortar orelha e arrancar escalpe. Aí, nós inventávamos brincadeiras de espadachins à dos Bosques ou de cobóis contra índios, saltávamos nas mangueiras, jogávamos espada, um amigo meu ficou sem o olho com essa brincadeira e os mais novos, incluindo eu éramos os índios e os matulões os cobóis que não se fartavam de nos dar muita porrada por mor das nossas esquivas e esconderijos. Em Nova-Lisboa fundaram um cine clube onde se debatiam os filmes e se apelava ao bom cinema, era como todos os cine clubes uma forma subtil de se opor ao sistema de Salazar. Um colega meu que fugindo ao fascismo acabou em Bruxelas como professor universitário de arte ou história da arte, em Nova Lisboa, morava perto do Ruacaná, cinema que sucedeu ao armazém do “Frei Luís de Sousa”, via todos os filmes e por essa e outras razões dedico esta crónica ao Artur Miguel.
Mais tarde, em Coimbra, assisti a outros filmes já chamados de westerns em que a desumanização dos antigos de cobóis se temperava para a saga da construção da América feita por famílias que emigraram para trabalhar na terra e organizar um Estado.
A grande surpresa foi “adivinhem quem vem jantar.” Um artista negro, Sidney Poitier. E a branquinha era cega, paixão bonita mas com o senão, a cegueira mas com a metáfora do amor que é mesmo cego. Sidney viria a ser o primeiro negro a ganhar um Óscar.
A luta dos negros americanos, minoria em contraste, por exemplo, com o Brasil em que são maioria e o segundo país negro depois da Nigéria, é para mim a mais sublime, pelo seu percurso, pelos seus ícones que passam pela música, pela cidade como New Orleães, pelo desporto e pela política. Agora pelo cinema.
Ocupo a minha incurável insónia verificando, muitas vezes emocionado, com a nova cinematografia norte-americana, quase um resgate ou pelo menos uma tentativa saudável de repor a verdade histórica, principalmente, em relação à trajectória dos negros na construção do país. Agora, os negros, no cinema, ocupam lugares de destaque, em chefias de polícia especial, em bancos, empresas, xerifes ou magistraturas judiciais, padres ou professores universitários. Mas isso terá a ver com quotas. Mas não é por aí… pois o país já teve Obama como Presidente.
O que agora acontece são os filmes sobre a guerra da secessão, o Sul do extermínio dos negros e o Norte o contrário. A guerra da secessão ocorre quando os do Sul se proclamaram independentes por se oporem ao fim da escravidão dos negros, durou entre 1861 e 1865 com balanço de 600.000 mortos. Não vamos aqui gastar linhas sobre outros factores determinantes da guerra, mas sim sobre o cinema que agora se faz a esse propósito.O novo cinema americano abriu o véu que escondia a verdade já relatada por historiadores e escritores, a luta entre o Sul feudal, aristocrático e cavalheiresco e o Norte interessado em destruir este modelo civilizacional contra a modernidade. Hoje o novo cinema americano que trata a problemática dos negros situa a mesma no plano puramente humano, os escravos e escravas exibindo sua beleza ante as chicotadas dos verdugos dos fazendeiros do algodão, tabaco ou minas. O amor. As crianças. As relações mistas, o americano negro que se apaixona por uma negra com quem tem um filho já de quinze anos a quem é escondido o fantasma que era e é a seita ku-klux-klan, ideologia em forma de terror, mascarados que percorrem as noites a cavalo, com archotes para matar negros e ou brancos com eles envolvidos, o garoto de quinze anos não sabe a razão pela qual os pais vivem assustados. Filmes que tratam do amor inter-racial. Do contributo dos negros na guerra civil, do primeiro dia em que os negros votam e os do ideário da supremacia branca fazem um compasso de espera que dura até hoje mas este novo cinema coloca os seres humanos que compõem a América, afinal os negros também são belos, também amam, as crianças correm de mãos dadas e acham bonito serem de cores diferentes, o jovem que perdeu a namorada vendida como escrava vai travar uma batalha contra o fazendeiro de fazenda grande com um velho mordomo negro que é um tirano contra a rapariga, aplica-lhe castigos, o jovem que roubou duas espingardas e um cavalo a dois cobóis, luta como um super homem contra tudo e todos, no fim liberta a namorada, pega fogo ao palácio, aparece o mordomo e o jovem herói desfaz a cabeça do cipaio com tiros, ela vai num cavalo e de arma na mão, linda, com essas tranças africanas compridas, ele vai noutro cavalo e fogem para onde? Para a liberdade. Qual? A da América onde o pai ex-combatente no Vietname se arrepende juntamente com o filho que combateu no Iraque…
Este tipo de cinema, com artistas de primeira grandeza e que se impõem a um público mundial não funciona apenas como catarse ou quase resgate mas sugere a necessidade da verdade histórica para que se não deitem mais estátuas abaixo. Portugal devia pensar nisso para descolonizar a descobrimentice.
Com o devido respeito, seria bom que a Embaixada dos USA realizasse aqui em Luanda um ciclo desse novo cinema, se possível, com debates no fim de cada sessão.
Escritor in JA