• 13 de Abril, 2025

Colégio é alvo de inquérito por recusar criança autista

 Colégio é alvo de inquérito por recusar criança autista

A Inspecção-Geral da Educação abriu um inquérito ao colégio Julieta Essanju, localizado no distrito urbano da Ingombota, município de Luanda, após uma denúncia da mãe de uma criança autista, que acusa o estabelecimento escolar de ter deixado de receber o menor, de cinco anos.

A criança foi rejeitada quando se deslocou ao colégio no primeiro dia de aulas, uma atitude que a mãe diz não entender, por ter feito a matrícula, depois de ter recebido, da própria directora, a garantia de que a instituição de ensino tem “carácter de inclusão”.
Na denúncia pública, a mãe do menor autista referiu que o pequeno foi mandado de volta à casa, em menos de 30 minutos depois de ter chegado ao colégio, tendo a progenitora sido comunicada que o estabelecimento escolar já não continuaria com o menino, sem ter dado “qualquer explicação”.
No dia seguinte, a mãe do menino deslocou-se ao colégio imbuída do pensamento de que pudesse ter havido “uma acção impensada” e chegar a um acordo para o seu filho retomar as aulas. À chegada à escola, a senhora e o filho encontraram um ambiente hostil.
“As professoras afastaram-se ao nos verem a chegar e a directora, publicamente e de forma ríspida, alegou não ter nada para falar comigo e que eu devia tratar tudo na secretaria para a retirada do menino do colégio”, lê-se no texto que circula nas redes sociais.
A senhora abandonou o local sem ter recebido uma explicação que possa estar na base da decisão do colégio, cuja direcção “rejeitou e desprezou, sem qualquer dignidade”, o filho.
A mãe do menor disse estar ainda mais revoltada por admitir que o colégio Julieta Essanju pode vir a não sofrer “qualquer consequência”, por ter rejeitado um aluno com necessidades educativas especiais.
Inquérito
Na sequência da denúncia pública, um inquérito foi aberto pela Inspecção-Geral da Educação, que está a trabalhar no caso com o Gabinete Provincial da Educação de Luanda. A direcção do colégio foi ouvida na sexta-feira e, na segunda-feira, a mãe da criança.
No sábado, quando foi contactada pelo Jornal de Angola, a chefe do Departamento de Organização dos Serviços de Educação Especial do Ministério da Educação, Antonieta Gonçalves, referiu que, além de a instituição querer ouvir a versão da mãe do menino, seria também analisado, no encontro, o nível de necessidade da criança, para ser encaminhada para uma instituição escolar pública com condições de acordo com a sua necessidade educativa especial.
Segunda-feira, ao telefone, a mãe da criança disse ter recebido a garantia de colocação do filho pelo Ministério da Educação numa escola pública, uma informação que o Jornal de Angola não conseguiu confirmar, apesar de ter tentado abordar, por telefone, Antonieta Gonçalves, um de dois funcionários da sector do Educação que ouviram a progenitora.
O inquérito está a ser acompanhado de perto pela Associação Nacional do Ensino Particular (ANEP), que, segundo a mãe da criança, vai ajudar na realização de um diagnóstico para definir o grau de autismo do menor.
A criança que está na origem da abertura do inquérito tem atraso na fala, é hiperactiva e “processa as informações muito lentamente”, de acordo com a mãe, que disse ainda ter o filho começado a falar agora e já consegue criar frases com duas ou três palavras.
“Já é uma grande evolução, porque, anteriormente, ele dizia apenas uma palavra”, explicou a senhora, comentando que o filho já consegue dizer, por exemplo, “mamã, quero água”, quando, anteriormente, só dizia “água”.
“Criança agressiva?” 
A directora do colégio Julieta Essanju, que se identificou apenas como Fátima, explicou ao Jornal de Angola que, no acto de matrícula, a mãe do menino explicou que o “filho é autista e tranquilo”.
A matrícula da criança, de acordo com a directora Fátima, foi feita porque o colégio, em obediência à estratégia de inclusão, traçada pelo Ministério da Educação, não tem fechado as portas às crianças com necessidades educativas especiais.
Até ao ano lectivo passado, o colégio Julieta Essanju tinha duas crianças com necessidades educativas especiais, uma das quais já não faz parte da sua população estudantil, por ter já concluído o II Ciclo do Ensino Geral.
A directora explicou que o colégio decidiu não continuar com a criança “por ser agressiva”, algo notado no seu primeiro dia de aulas. A gestora do colégio descreveu a situação como preocupante, porque a criança puxava com agressividade a professora e uma vigilante.
“Naquelas condições não se conseguia trabalhar com a criança”, argumentou a gestora do colégio, acrescentando que, desde a sua entrada para a sala de aula, o menino não quis ficar sentado”, preferindo ficar de pé, por cima da carteira, e pular de carteira em carteira, lançando pastas e lápis aos colegas.
Informada da situação, a directora deslocou-se à sala em questão, com um papel e lápis de cor, objectos que foram retirados das suas mãos pelo menino, que, de seguida, lhe desferiu “um estalo na cara”.
A criança foi retirada, com cuidado, da sala, porque os colegas ficaram assustados, explicou a directora do colégio, que confirmou ao Jornal de Angola ter sido a mãe do menino orientada a contactar a secretaria para ser informada do sucedido e da decisão de não continuarem com o menino.
Lamentando o sucedido, a directora salientou que, “se o menino não fosse tão agressivo, o colégio não tomaria a decisão que tomou, por ser uma criança que precisa de muita ajuda”.
A única criança com necessidades educativas especiais a estudar no colégio também é autista, que, apesar de ter episódios de desmaio, é seguido, há já dois anos, em matéria de aprendizagem, pelo colégio, com a ajuda dos pais.
 Ensino Inclusivo
O pedagogo Ngangula Miguel de Sousa disse que o Ministério da Educação deve fazer melhorias nas políticas de inclusão nas escolas, nas quais os alunos autistas possam se sentir abrangidos.
O especialista, que falava ao Jornal de Angola sobre a inclusão no ensino, disse que um país só se desenvolve com uma educação abrangente, na qual todas as crianças possam ter educação com qualidade.
Para o também pedagogo, o caso do menino autista, estudante do colégio Julieta Essanju, é um acto reprovável, que vai contra a lei de inclusão que vigora em Angola.
“A Lei dá claros direitos a todas as crianças com necessidades de aprendizagem a terem acesso ao ensino de forma transversal”, destacou.
As modalidades de um ensino transversal, esclareceu, são para salvaguardar os direitos dos indivíduos com necessidades motoras, sensoriais, mentais e transtornos de conduta.
“A regra aplica-se tanto para o sistema público, quanto para o particular”, adiantou.
O pedagogo destacou que uma das orientações da Declaração de Salamanca, da qual Angola é signatária, chama atenção para a inclusão social na educação e realça que todas as crianças devem aprender juntas, independentemente de qualquer deficiência.
Ngangula de Sousa fez saber que entre os cinco acordos obrigatórios da Declaração de Salamanca um deles é o acesso fundamental à educação, no qual as crianças têm direito a aprendizagem, mesmo que elas tenham características, interesses, capacidades e necessidades próprias.
“O sistema de educação deve ser planeado e os programas educativos implementados tendo em vista a vasta diversidade destas características e necessidades. As crianças com necessidades educativas especiais devem ter acesso às escolas regulares, que devem adequar-se, através de uma pedagogia centrada a estas e ser capaz de ir ao encontro das necessidades das mesmas”, explicou.
As escolas regulares, continuou, devem ter meios mais capazes para combater as atitudes discriminatórias, criando mentalidades abertas e solidárias, construindo sociedade inclusivas e dando educação de qualidade para todos.
“O que aconteceu no referido colégio demonstra um grave problema no sistema educacional nacional e que as escolas não estão preparadas para lidar com o autismo. Muitas delas precisam de especialistas totalmente preparados e salas de aula adequadas”, destacou.
Para Ngangula Miguel de Sousa, a inclusão escolar não deve ser limitada apenas à admissão dos autistas nas salas de aula.”É necessário que seja feito um diagnóstico de um neuropediatra, um psicólogo, um psiquiatra e um pediatra, afim de avaliar o grau de autismo, de forma que a escola, dentro das suas metodologias saiba como trabalhar com o aluno”
As escolas inclusivas, salientou, são as adaptadas do ponto de vista psico-pedagógico e psicológico, com condições e material adequado.
“Se pegarmos um aluno com condição especial e o colocarmos numa sala de aula, sem preparar as escolas ou os professores, não estaremos a incluir e sim a exclui-los”, afirmou.
Cada criança é única e especial
A psicóloga clínica Suzana Diogo disse que o caso do menino retirado do colégio, no primeiro dia de aula, é um erro, pois os autistas também têm os mesmos direitos que os demais estudantes.
“A criança com autismo aprende naturalmente, com métodos diferenciados. Até ao momento, não existe a cura para o autismo, mas isso não retira da pessoa a qualidade e o valor, enquanto ser humano, com direitos iguais das demais”, disse.
Geralmente, conta, a pessoa com esta perturbação tem limitações na capacidade para comunicar, prefere isolar-se, pode apresentar estereótipos gestuais, atrasos na fala e reagir de forma inesperada, por vezes agressiva, à introdução de novos elementos, como objectos, sons ou mesmo pessoas, à sua rotina diária.
“É preciso desconstruir a ideia de que todas as crianças são iguais e todos autistas apresentam as mesmas características. Cada criança é única e especial. Inclusive há relatos de autistas com enorme potencial para o desempenho de tarefas específicas”, aclarou.
No caso de crianças autistas em idade escolar, a inclusão no sistema de ensino em Angola não tem sido fácil, o que preocupa pais e encarregados de educação, que querem ver os filhos usufruírem deste direito.
“O ponto de partida desta dificuldade está na falta de centros especializados de diagnóstico do autismo e na falta de acompanhamento destas por profissionais entendidos na matéria”, lamentou.
Condição
Perturbação do desenvolvimento humano
O Autismo ou Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma perturbação global do desenvolvimento humano, que se manifesta antes dos 3 anos de idade do indivíduo e  caracteriza-se por um défice acentuado, principalmente, na capacidade de interacção social e na comunicação. O autismo não tem causa definida e ocorre com maior incidência em meninos do que em meninas.
De acordo com a psicóloga clínica Suzana Diogo, embora, nalguns casos, os sinais do TEA sejam perceptíveis logo à primeira vista, é necessário que a criança passe por avaliação de um especialista, para que seja devidamente acompanhada e para que a família receba, não apenas o diagnóstico, como também orientações de como ajudar a criança a se sentir cada vez mais parte do meio, a interagir, utilizando códigos e a compreendê-la; Ao invés de rotulá-la e discriminá-la.
Realça que não se deve descurar a necessidade de a criança ser constantemente acompanhada por psicólogos, fono-audiólogos e outros terapeutas que se fazem necessários, para que haja realmente alguma evolução.
As dificuldades financeiras, a falta de consciencialização sobre o autismo e a carência de escolas com condições necessárias têm sido bloqueadores para o acesso destas crianças ao ensino.
Enquanto não houver um número considerável de escolas capacitadas, a criança com TEA não pode estar privada do contacto com os colegas na escola e de uma educação de qualidade, acrescentou.
Papel da educação
Para Suzana Diogo, o professor tem a função de mediador entre o aluno e a aprendizagem.
“É ele quem recebe a criança e a orienta em todas as actividades escolares, daí a necessidade de estar munido de competências para o fazer e bem”.
Para a psicóloga clínica, é fundamental que todas as pessoas envolvidas com a criança autista tenham conhecimentos sobre a perturbação, saibam de concreto o que a agrada ou desagrada e a forma como ela processa a informação, de modo a criar uma relação de confiança e tornar mais facilitado o processo de interacção.
Outro aspecto importante, realça, é trabalhar com outras crianças, promovendo a aceitação desta como parte integrante do seu leque de colegas e amigos. A criança com TEA, tal como qualquer outra, precisa receber elogios e recompensas sempre que necessário, destacou.
Segundo Suzana Diogo, quando não se conhece o diagnóstico e muito menos a perturbação, alguns comportamentos da criança autista, como a hiperactividade, desinteresse em certas actividades ou movimentos estereotipados, como bater palmas e estalar os dedos, são entendidos como birras, falta de educação ou preguiça.
A perturbação não é contagiosa, logo, é inadmissível que muitas instituições, simplesmente por alegada falta de condições, rejeitem uma criança ou adolescente com TEA, concluiu a especialista.

JA

 

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